Nos dias atuais, muitos se referem ao “novo normal” e tentam compreendê-lo. Há uma citação da Marina Gorbis, que é uma das maiores autoridades em “futurologia” direcionada à tecnologia no mundo, que ilustra bem essa questão: “muito mais importante que predizer o futuro é estar preparado para ele”. Nesse sentido, as organizações deverão ser cada vez mais ágeis e resilientes, capazes de adaptar suas estruturas a diferentes cenários e realidades. Ter identificado de forma muito clara o seu core e assegurar bases para operação em tempos de incerteza, até conseguir estabelecer novos padrões.
Gerenciamento de risco requer o conhecimento profundo do seu core business, das suas bases operacionais e do seu mercado, além de extrema agilidade em relação às respostas frente aos desafios identificados no presente ou vislumbrados por meio de projeções de cenários. É preciso, ainda, que essas regras de reação estejam contempladas no modelo de governança das organizações, sobretudo no caso das empresas de maior porte, para definir a autonomia do board em relação à tomada de decisão: saber quem deve ser acionado, quais “compartimentos de água que devem ser fechados” (em alusão a um barco ou navio avariado e à necessidade de redirecionamento orçamentário), o que fazer em curtíssimo prazo até ter um novo plano de navegação e assim por diante, visando viabilizar respostas rápidas e assertivas. Novamente: não podemos prever o futuro, mas é preciso estar preparado para gerir estruturas frente a incertezas. E, daqui para frente, talvez a única certeza que tenhamos é a de que o futuro será cada vez mais incerto.
E com isso surge um novo perfil de liderança. O novo líder, antes de mais nada, precisa ser reconhecido como líder e não como gestor. Ter sua liderança abraçada pela organização, independentemente do porte ou do segmento de atuação. Muito bem colocado por Abílio Diniz, em uma entrevista concedida à Revista Exame anos atrás sobre liderança e as principais características valorizadas em um gestor – “humildade, determinação e garra, disciplina e equilíbrio emocional”, sendo equilíbrio, segundo ele, a mais importante. Sem equilíbrio, um líder em um momento de crise pode comprometer toda uma operação. Cabe ao líder ser enérgico, a exemplo do “estilo Jorge Paulo Lemann”, que é outro brasileiro que admiro muito, mas precisa entender como, quando e até onde é possível “esticar a corda e mantê-la preservada em momentos de tensão” como os observados em crises. “Esticar a corda” é um termo que usamos em gestão quando demandamos alto desempenho da equipe, sob condições adversas. Além dos demais requisitos à boa liderança citados por Diniz (humildade, determinação e garra e disciplina), merece destaque especial a “humildade”. Humildade tanto no aspecto da busca de aprendizado continuado, seja em cursos e atualizações como congressos e cia ou por meio da proximidade/da vivência com a operação interna e com o mercado (clientes), como na decisão de buscar ajuda externa para resolver problemas identificados como não-possíveis de serem solucionados pelo time interno. Infelizmente, por questão de vaidade – porque o líder é o somatório da sua equipe –, quando se procura ajuda externa pode ser que a situação tenha se agravado ou, até mesmo, seja tarde demais. Equilíbrio e humildade, informação e agilidade são em momentos de crise, a importância em ter um comitê de crise estabelecido é diretamente proporcional à complexidade e ao perfil de risco das organizações: quanto maiores as empresas e as variáveis sensíveis de gestão relacionadas, maior a relevância da constituição de um comitê de crise. A única ressalva importante seria em relação à agilidade: conforme o já aqui colocado, as estruturas e as regras de governança precisam estar definidas de forma objetiva e clara, com níveis de autonomia definidos. Da mesma forma, ter uma assessoria jurídica ao negócio é fundamental, seja para proteger assets da empresa ou para identificar possíveis riscos referentes à operação e à utilização de seus produtos e serviços. Na verdade, tal assessoria deve sempre caminhar ao lado da estratégia e da gestão, a fim de fornecer os alicerces jurídicos fundamentais à operação, e não somente em momentos de crise.
A respeito das ações tomadas pelas empresas em relação à gestão da imagem e de stakeholders: não existem receitas mágicas. Cada situação deve ser analisada mediante contexto e análise da situação atual da empresa, se ela está respaldada juridicamente, se tem caixa suficiente para absorver possíveis impactos negativos, se consegue proteger sua vantagem competitiva, se tem o valor principal das suas entregas avaliado pelo mercado ainda como válido. Em outras palavras, se ainda é preservado o valor original aos produtos e serviços ofertados.
Cuidar da imagem institucional, no sentido de realizar ações que agreguem valor à marca também é fundamental. Um bom exemplo seriam as ações abraçadas pós Covid-19 no Brasil por empresas como a Ambev, a Gerdau e o Hospital Albert Einstein no Projeto “O Cubo”, que viabilizou a entrega de diversos novos hospitais em menos de 30 dias a partir de construções em blocos pré-formatados que lembram containers. Muitas outras ações parecidas emergiram da crise como as realizadas por empresas como a Natura e a Coca-Cola para a produção e distribuição de álcool em gel, produto essencial para o enfrentamento da Pandemia que chegou a faltar no mercado, e assim por diante.
Daqui para frente investir em ações que extrapolem os limites das empresas, como investimento em “ações do bem” ou “Time/Capital B” será cada vez mais importante: a movimentação de valorização de ações relacionadas à sustentabilidade ambiental e social, que vinha sendo abraçada pelas gerações mais novas (Gerações Y e Millenials), passou a ser uma bandeira levantada com maior intensidade por todas as gerações. A busca de propósito e a identificação com o “proposito corporativo”, de marcas e de produtos, é algo que veio para ficar. Mas isso tem que ser real, espelhado nos verdadeiros valores e nas crenças das instituições. Caso contrário, será rejeitado pelo mercado. Representam, portanto, questões que extrapolam, em muito, ações apenas relacionadas a branding.
Riscos existem e sempre existirão. O importante é ter planos de mitigação e de contingenciamento dos mesmos, quer sejam relacionados à operação, à imagem ou aos produtos e serviços ofertados. “Blindar uma corporação” envolve desde ter normas rígidas de qualidade (processos) e compliance (operação e produtos, como associações positivas à imagem institucional (branding). Não se tratam, portanto, de ações isoladas, mas de um conjunto de ações que assegure maior força e sustentabilidade ao negócio. Os impactos tendem a ser inversamente proporcionais nesse caso: quanto mais bem estruturadas forem as organizações, menores os impactos frente a fake news, uma vez que a empresa terá conquistado credibilidade frente ao mercado. Imagine a seguinte informação: alguém questionar a qualidade ou associar um efeito colateral negativo a um produto da Nestlé, que tem seu posicionamento confirmado pelo mercado em três pilares: qualidade, tradição e credibilidade. Muito provavelmente as pessoas questionariam a origem desse tipo de informação. Já se o mesmo ocorresse com uma organização que apresentasse fragilidades, a resposta do mercado poderia trazer consequências devastadoras.
As empresas precisam abraçar ações que espelhem os valores institucionais, que sejam ações reais e sustentáveis, e não somente ações isoladas. Conforme o que coloquei anteriormente: os consumidores e a sociedade estão cada vez mais exigentes e esperam que as empresas tenham ações sociais e ambientais em suas gestões, não apenas como marketing, mas como parte de seu DNA. Isso também extrapola o horizonte de crises e deveria ser uma preocupação constante das organizações.
O tão referido “novo normal” ainda não foi alcançado: serão precisos, ainda, alguns meses após tudo isso para que a situação “se estabilize”. Esse é o conceito de “normalidade”. Há cenários projetados por analistas, apoiados em estudos apresentados pela OMS e por especialistas pandemiologistas, que preveem que haja novas pandemias após a Covid-19 e que esse será o novo pano de fundo da humanidade, levando a novos protocolos permanentes de afastamento social e/ou de redução do número de pessoas/grupos de convívio, entre outros impactos como intensificação de e-commerce e atividades à distância. Há, também, cenários que predizem que, como as grandes crises econômicas que em geral têm seguido o padrão de sete em sete anos para picos de ocorrência, as crises pandêmicas tendam a seguir parâmetros semelhantes sendo mais espaçadas, com dist6enciamento entre elas entre 20 e 50 anos. Ainda, existem cenários projetados no meio do caminho e com inúmeras variações. Só para se ter uma ideia, há dados que mostram que no século passado o volume de informações existentes a uma pessoa comum demorava quase que 20 anos para dobrar. Hoje isso ocorre em menos de 2 anos.
O futuro não pode ser predito, em absoluto, mas sim ter seu perfil desenhado a partir de premissas adotadas e de contextos assumidos. A isso se dá o nome de cenários possíveis. Cabe a governos e a empresas adotarem a seus planejamentos os cenários que julgarem mais aderentes às suas leituras. Trata, portanto, de ciência não-exata. No final, por mais desconfortável que possa parecer, ao abraçar um cenário como “possível” para servir de pano de fundo ao desenvolvimento da estratégia e à implementação da gestão, é abraçada uma aposta e não uma certeza. Aliás, todos os princípios de estratégia tratam de apostas, mais ou menos fundamentadas, que deram ou não certo. Por mais bem estruturado que seja um planejamento, por melhor que sejam as análises feitas por determinado especialista, podem ocorrer disrupções e descontinuidades, os chamados Cisnes negros, que derrubarão todas as premissas anteriormente estabelecidas. E, novamente, o mais importante nesses casos não é predizer com exatidão o que ocorrerá, mas sim ter ferramentas e condições para respostas rápidas e assertivas, moldadas à realidade atual.
Por fim, cabe registrar que com a Pandemia Covid-19 os impactos da chamada “IV Revolução Industrial”, pautada em Cyber Physical Systems (CPS) – com máquinas conversando com outras máquinas e interagindo com humanos –, Inteligência Artificial (IA) e outros, foram adiantados, demandando a revisão de modelos e estruturas de negócios, bem como de profissões e qualificações. Com o distanciamento físico, o mundo corporativo descobriu que pode operar com estruturas mais enxutas e simples, se beneficiando de plataformas tecnológicas. Isso irá impactar de sobremaneira o mercado de trabalho e os negócios.
Quanto maior proximidade junto aos mercados atendidos, maiores são as chances de as empresas conseguirem identificar se houve mudança no valor real e no valor percebido de seus produtos e serviços e, dessa forma, reforçarem a atuação vigente ou buscarem adequar seus modelos de negócio. Eu costumo brincar que não existe receita de bolo: o que deu ou dá certo para uma empresa pode não funcionar com a outra e assim por diante. Não gosto das chamadas “receitas mágicas de sucesso”, onde são recomendados “cinco passos essenciais disso ou daquilo”. Crises podem ser excelentes oportunidades de reinvenção e de reposicionamento de mercado frente a rankings preestabelecidos e consolidados. Podem mudar todas as regras do jogo, fazendo com que produtos e serviços simplesmente desapareçam ou tenham que ser adequados, que profissões sejam descontinuadas e novas funções criadas.
As empresas deveriam realizar um mergulho profundo tanto em suas essências como nos mercados atendidos, buscando formas para inovar tanto em relação aos seus processos como em suas entregas, que são produtos e serviços. É preciso entregar o que faça sentido aos clientes, seja por meio de demandas primárias ou mesmo de “sonhos de consumo”, acompanhar tendências e mudanças de comportamento social e, novamente, ter estruturas flexíveis e ágeis, tanto para pequenas adaptações como para uma eventual mudança radical do modelo atual de negócios.
Uma boa recordação para ilustrar a necessidade de visão x estruturas flexíveis x capacidade de leitura do ambiente de negócios x agilidade em relação à reação seria o caso da Olivetti, que era o maior player em máquinas de escrever, de datilografia, até os anos 80 e que com a chegada dos computadores pessoais foi praticamente extinta. Muito provavelmente, em função da amplitude e da confiabilidade da marca à época frente aos grandes escritórios e empresas em geral (todo mundo tinha uma máquina de escrever, nem que fosse para emitir um recibo ou uma nota fiscal), se eles tivessem modificado o core business, comprando tecnologia ou se aliando a quem estivesse à frente, poderiam ter se tornado líderes no segmento de computadores pessoais, que é até hoje um dos mais lucrativos considerando hardware e software, de desktop e mobile.
Daqui para frente monitorar o mercado e ser capaz de rever de forma sistêmica estruturas atuais e de buscar novos modelos será fundamental não somente para o desenvolvimento dos negócios, mas sobretudo para a sobrevivência dos mesmos. As mudanças acontecerão de forma cada vez mais rápida, os cenários serão cada vez mais difíceis de serem preditos. E, muitas vezes, nossos barcos sofrerão avarias incapazes de serem consertadas, o que nos levarão a voltar para o porto para consertos e talvez até para aquisição de novas embarcações, de novos formatos de negócios e de entregas/produtos a serem ofertados. Novamente, é vital assegurar condições para respostas rápidas, a partir da preservação ou da reinvenção dos negócios atuais. Navegaremos, daqui para frente, em oceanos cada vez mais revoltos. Esse será, muito provavelmente, “o novo normal”.
Sobre a autora: Rossana Pavanelli é executiva de alta performance, direcionada a resultados. Consultora-sênior da FGV, líder do Think Tank na América Latina, posicionado nos 5 principais Think Tanks do mundo. Coordenadora do Post MBA em Gestão da Inovação da FGV. Nos últimos 25 anos trabalhando para grandes organizações públicas e privadas, com foco em estratégia, alto desempenho, redução de custos, inovação, novas soluções e avaliação de impacto de resultados. Membro de Conselhos em Instituições Internacionais, tem participado de projetos de análise e gerenciamento de riscos de maneira constante ao longo dos últimos 15 anos.