Psicóloga e especialista em Gestão do Conhecimento
A liberdade é apenas uma palavra vã quando não está acompanhada de poder.
As árvores de conhecimentos: Pierre Lévy & Michel Authier
Para ilustrar uma reflexão sobre liderança e a relação entre os conhecimentos individual, grupal e organizacional, convidamos o leitor para conhecer uma história real e que trata-se da história de um camponês chamado Dersu Uzala, homem que pela sua pureza de alma, não sabendo as distinções entre um homem e um pássaro, voou o tempo quase todo de sua existência. Os registros de sua história nos dizem que, quando por razões adversas, Dersu deixa de voar ele definha e morre.
História do Dersu Uzala e a Sua Liderança Exercida com Base no Conhecimento
Dersu Uzala – um camponês mongol que no decorrer da primeira década de 1900 serve de guia em três expedições na Sibéria. Os serviços destas expedições foram encomendados pelo governo russo e a missão era realizar levantamentos topográficos naquela região. O encontro casual do Dersu com o grupo desses trabalhos, cujo modelo mental era bastante urbano, fez toda a diferença no decorrer das missões. Desta relação nasceu uma forte amizade entre eles, em especial, entre Dersu e o líder do grupo, a quem o Dersu chamava de Capitão.
Dersu, tinha muitos conhecimentos empíricos sobre sobrevivência naquela região montanhosa e fria da Sibéria, era um exemplo admirável de humildade, um modelo de pureza, de coragem, de desprendimento, de sabedoria e de tolerância. Sua história está apresentada em um filme intitulado Dersu Uzala do cineasta Akira Kurosawa (1910 – 1998), lançado em 1975 que teve como base, o livro autobiográfico com o mesmo título do Vladimir Klavdievich Arseniev (1872 – 1930), líder das expedições. Arseniev e os soldados tiveram profundas experiências interagindo com o Dersu. Alguns pontos-chave destas experiências, apresentadas a seguir, servirão para enriquecer a reflexão sobre: a importância do compartilhamento de conhecimentos; a liderança situacional; os impactos do ambiente externo; e a convivência diante das imprevisibilidades. As narrativas que serão exploradas aqui aconteceram num ambiente diferente das organizações, mas propositalmente foram utilizadas para possibilitar uma associação ou um olhar mais humanizado para as relações de convivência entre as pessoas nas empresas contemporâneas.
Conhecimento Individual e o Compartilhamento
Dersu, uma vez que sempre viveu na floresta, construiu seus conhecimentos por meio da observação e é também por meio desta mesma observação que ele tenta transferir seus conhecimentos para o grupo de soldados. Vale conferir o diálogo abaixo que Arseniev escreve no seu livro.
“Pela manhã acordei mais tarde que os outros e fiquei surpreso ao ver que não havia sol. O céu estava encoberto. Ao notar que, na hora de embalar os sacos, os soldados tomavam o cuidado de protegê-los contra a chuva, Dersu disse simplesmente:
- Não é preciso ter pressa! Vamos andar bem durante o dia. Só vai chover ao anoitecer.
Perguntei-lhe por que não choveria durante o dia.
- Olhe um pouco com seus próprios olhos.
- respondeu-me.
- Você vê que os passarinhos vão para todo lado, brincam e comem. Quando a chuva está para chegar eles ficam quietos, como se estivessem dormindo.” (ARSENIEV, 2011, p.19)
Nas organizações, dependendo da natureza do negócio, as rotinas são executadas com base nos procedimentos pré-estabelecidos de trabalho que garantem a qualidade, o volume de produção, a eficácia, mas é interessante que os colaboradores sejam incentivados a estarem atentos aos sinais que apontam sempre para as possíveis melhorias nos processos, sejam eles automatizados ou não. Para que as melhorias sejam percebidas e sugeridas pelos colaboradores, faz se necessário a existência de canais abertos de comunicação, pois o conhecimento nasce sempre no âmbito individual e somente evolui em ambiente favorável a este.
Aplicação de Conhecimento Numa Situação Imprevisível
Para o grupo, ter o Dersu como guia foi fundamental para os trabalhos desenvolvidos, considerando a sua grande sagacidade e intuição prodigiosa. Certamente que o grupo detinha os conhecimentos técnicos sobre as atividades que seriam desenvolvidas, mas quem conhecia o universo daquele lugar era o Dersu, quem conhecia os comportamentos das pessoas e dos animais da montanha, quem analisava as pegadas dos animais e calculava há quantos dias os mesmos teriam caminhado naquele lugar era o Dersu, quem sabia que à noite, um determinado animal feroz provavelmente iria invadir o acampamento e devorar a equipe, era o Dersu. Nas montanhas existem perigos como: animais ferozes, tempestades, nevascas, forasteiros. Dersu conhecia muito bem esses perigos e alertava a equipe sobre como se defender.
Liderança Situacional Com Base no Conhecimento
Há registros que ocorreram três expedições de Arseniev na Sibéria, a primeira em 1902, a segunda em 1906 e a terceira e última em 1907. Nessas ocasiões, muitas foram as situações que construíram a confiança que Arseniev e o grupo adquiriram em Dersu, mas no início não foi tão fácil. Fazendo uma retrospectiva desde a primeira expedição, é notório perceber que o comportamento do Dersu era objeto de chacotas, os soldados com o modelo mental urbano, achavam engraçadas as atitudes do Dersu, em relação o meio ambiente e riam do seu modo de ser, não entendiam o comportamento respeitoso que ele mantinha perante as regras naturais da floresta, não compreendiam a importância das atitudes do Dersu, que ao desmanchar os acampamentos, sempre se preocupava em deixar um pouco de comida no local, sempre tentando prover a necessidade de outros “homens” que poderiam se servir ao acampar naquele mesmo local posteriormente. Ao longo do tempo, estes gestos do Dersu foram sendo interpretados como o cuidado com o próximo, cuidado com as pessoas que chegam naqueles lugares depois deles. Esses gestos nobres, assim como tantos outros foram construindo, na mente do grupo, a posição que o Dersu acabou conquistando, a posição de um líder situacional.
As evidências percebidas nos relatos da história do Dersu somadas com as analogias possíveis sobre a liderança situacional nas organizações contemporâneas, podem provocar as seguinte reflexões:
- Esta liderança situacional, não deve ser imposta e sim conquistada, genuinamente conquistada;
- A postura de uma pessoa que ocupa o lugar de líder situacional, costuma normalmente, ser isenta de vaidades;
- O líder situacional não tem interesse em assumir o cargo de liderança na hierarquia da empresa, pois o que o impulsiona de verdade é a conversão dos seus conhecimentos tácitos em explícitos e movimentar a espiral do conhecimento.
- O objetivo principal do líder situacional é tornar a gestão sempre mais produtiva e mais lucrativa; e
- O líder situacional somente existirá se o ambiente em que ele se encontrar for favorável, isto é, se o líder hierárquico estiver de acordo.
Os modelos de gestão das organizações, em sua grande maioria, adotam uma estrutura organizacional vertical que contemplam a relação das pessoas de forma hierárquica considerando - “líder e equipe”. Este formato é ideal em muitas situações, porém impõe uma hierarquia de poder que nem sempre é favorável para o sucesso dos trabalhos que necessitam de um potencial de criatividade constante. Dependendo da natureza do negócio, algumas empresas conseguem trabalhar orientadas à projetos, assumindo uma estrutura mais horizontal. Nestes casos, fica bem mais fácil flexibilizar a hierarquia e designar o líder, usando como base, a pertinência dos seus conhecimentos, habilidades e atitudes associados à cada projeto. Porém, em repartições públicas ou empresas que adotam uma organização hierárquica rígida, o sucesso dos trabalhos que exigem criatividade constante pode, em algumas situações, ser comprometido ou mais lento.
As empresas, ao iniciarem seus investimentos em gestão do conhecimento, devem ficar atentas para a possibilidade de flexibilização das suas estruturas de forma que, competências individuais apareçam e se manifestem em conformidade com as necessidades e peculiaridade do negócio. Cada empresa, precisa encontrar a sua forma e os seus próprios meios para realizar a inovação da estrutura organizacional e, para enriquecer o elenco de sugestões, recomenda-se que conheçam uma estrutura organizacional apresentada por Nonaka e Takeuchi, denominada estrutura em hipertexto. Esta estrutura, de forma detalhada, está descrita no livro de autoria desses autores, intitulado “a criação do conhecimento na empresa” e, para intensificar a motivação dos leitores na adoção de práticas que incentivem a revisão da estrutura organizacional, bem como o surgimento de líderes situacionais nas empresas, vale a pena refletir sobre o que pensam Pierry Lévy e Michel Authier sobre a subjetividade humana. Eles dizem o seguinte.
“Ninguém possui a mesma história, ninguém sabe as mesmas coisas. Haveria uma singularidade, uma identidade específica dos indivíduos que se definiria pelo que eles sabem, como uma impressão digital, um rosto trabalhado pela experiência, o timbre de uma voz, um nome, uma assinatura.” Pág. 100
No início, este artigo, compara o prazer de voar de um pássaro com o prazer que o homem tem em vivenciar a sua criação, posteriormente apresenta uma história real de um homem naturalmente criativo. É notório que o saber do Dersu não tinha reconhecimento de nenhuma instituição de ensino, porém sem saber que isso deveria ser necessário para a sua vida, ele próprio foi seu pedagogo. É notório também que o repositório de conhecimentos do Dersu, só foi possível ser criado porque seu prazer em criar pode ser comparado com o prazer de voar de um pássaro. Talvez as organizações estejam repletas de “Dersus” e estes estão esperando uma oportunidade para se manifestarem.
Gestão do conhecimento não se resume em investir em tecnologias de ponta, criar um novo setor responsável por esta gestão, nem se resume em criar um banco de dados de melhores práticas. Tudo isso é importante, mas está incluído no segundo passo, pois o primeiro, é a conscientização dos acionistas e da alta direção da empresa, quanto a necessidade de criar um ambiente propício para maior integração entre as áreas estratégicas e as operacionais, diminuindo assim o distanciamento entre as ideias visionários e a execução destas mesmas ideias.
Trabalhar com gestão do conhecimento é modo de ser da empresa e existe um dever de casa a ser feito, que é tornar o ambiente organizacional favorável a esta gestão e lembre-se, o prazer de voar está para um pássaro, assim como o prazer de criar está para o homem.
*Elisabeth Vargas, como bibliotecária atuou em empresas do sistema PETROBRÁS por 15 anos, como especialista em Gestão do Conhecimento, elaborou estudos de casos e metodologias com o objetivo de identificar e analisar a existência de ambientes organizacionais favoráveis à inovação. Implantou processos de gestão e programas de aprendizagem em escolas corporativas. Atuou como Diretora de Administração da SBGC, gerente da área de gestão do conhecimento da Serasa Experian e chefe de gabinete da Presidência da Companhia de Desenvolvimento Industrial – CODIN. Atua como consultora na área de Gestão do Conhecimento e, como Psicóloga, realiza atendimento clínico usando uma abordagem psicanalítica. No campo social, atuou como examinadora voluntária do Prêmio Qualidade Rio e realiza rodas de conversas com temas relacionados ao autodesenvolvimento.
Bibliografia
ARSENIEV, Vladimir. Dersu Uzala. Trad. Aguinaldo Anselmo Franco de Bastos e Lucy Ribeiro de Moura. 2 e.d. São Paulo. Veredas, 2011.
DERSU Uzala. (Filme) Direção de Akira Kurosawa. Japão e antiga das Repúblicas Socialistas Soviéticas: Yoishi Matsue / Nikolai Sizov, 1975. 140 min.
CONDORELLI, Antoninio. Dersu Uzala: hibridação homem-natureza. RN, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2011. 157 f. Tese (Mestrado em Educação) Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Programa de Pós-Graduação em Educação.
IKUJIRO, Nonaka; HIROTAKA Takeuchi. Criação do conhecimento na empresa. Rio de Janeiro, Campus, 1997
LÉVY, Pierre; AUTHIER, Michel. As árvores de conhecimentos. São Paulo. Editora Escuta, 1995.