As consequências da pandemia de Covid-19 têm provocado forte impacto na sociedade e no mercado, obrigando empresas e organizações a mudanças drásticas para se adaptar ao novo contexto e mesmo sobreviver. Aquelas que não foram obrigadas a fechar as portas e interromper suas atividades estão tendo que aprender a trabalhar de forma diferente e criar novas formas de atuação.
As empresas, em geral, estão organizadas para executar bem, mas nem tanto para aprender ou criar. Aparentemente, essas duas atividades nunca predominaram na rotina das organizações, mas são fundamentais para a transformação que se fez ainda mais necessária a partir de agora. A gestão do conhecimento, neste contexto, emerge como uma capacidade organizacional crucial, tanto para resposta imediata em meio ao turbilhão quanto para criação de um novo patamar de gestão para o futuro.
Desafios imediatos: interpretação do cenário, adaptação e aprendizado
Entre os inúmeros desafios que os negócios enfrentam hoje, ressaltamos a elevada incerteza no mercado e no ambiente em geral, a necessidade de uma adaptação rápida e ágil, e a importância de aprender com a situação. Para cada um desses desafios, a gestão do conhecimento (GC) tem contribuições relevantes.
Desafios do negócio [Hoje] |
Contribuições da GC [Hoje] |
Incerteza |
Interpretação do cenário |
Adaptação |
Busca e criação de soluções |
Aprendizado |
Sistematização de conhecimentos |
No início do ano, ninguém teria previsto a pandemia e seu impacto no dia a dia das pessoas e das organizações. De uma hora para outra, o planejamento ficou obsoleto, projetos precisam ser revistos e não há como prever como as coisas vão se desenrolar. As informações disponíveis hoje são insuficientes para definir como será amanhã, e a incerteza aumenta à medida em que os eventos locais, nacionais e globais se desenrolam. Com isso, a complexidade das ações cresce e a tomada de decisão fica mais difícil.
Neste contexto de alto grau de incerteza, uma das contribuições da gestão do conhecimento pode ser ajudar a organização a reunir informações, interpretar sinais e analisar cenários. Quais têm sido as implicações para nossos clientes ou usuários? Como outras organizações do setor estão lidando com isso? Como outros setores estão reagindo? Buscar e identificar fontes relevantes, avaliar a qualidade da informação disponível e fazer uma boa curadoria de conteúdo ajuda a clarear o cenário. Reunir pessoas com diferentes especialidades e facilitar discussões contribui para uma análise mais abrangente. Com iniciativas nessa direção, a GC pode ajudar a construir uma visão conjunta da situação e articular decisões e ações mais sólidas, baseadas em uma compreensão abrangente e profunda do momento.
Mais do que nunca, as empresas e os seus colaboradores precisam se adaptar a um novo contexto. A necessidade de trabalhar remotamente obriga as pessoas a conciliar demandas profissionais e familiares, a aprender e usar novas ferramentas, a acessar documentos, pessoas e recursos de forma remota, e mesmo a assumir novos papéis. As empresas, por sua vez, estão tendo que adaptar horários e canais de atendimento, reorganizar as equipes, rever projeções estratégicas e orçamentárias, ajustar práticas logísticas e até mesmo repensar produtos e serviços. Novos desafios surgem a todo momento e é preciso buscar respostas, onde estiverem, ou criar soluções inovadoras.
Um dos grandes potenciais de contribuição da gestão do conhecimento está em facilitar o acesso a conhecimento disponível na organização para que aqueles que estão na linha de frente ajam de forma ágil e efetiva. A gestão do conhecimento facilita a busca de informação na forma de guias e roteiros, dúvidas frequentes, boas práticas e soluções, por exemplo. Auxilia a busca por especialistas e pessoas mais experientes e facilita o contato entre quem precisa de ajuda e quem pode ajudar. Pode também promover a colaboração entre pessoas dispersas, até mesmo reduzindo a necessidade de conversas ao vivo, em tempo real, por meio de ferramentas de interação assíncrona. Outra forma de contribuir é viabilizar a coordenação do trabalho por meio de métodos ágeis de gestão e execução de projetos e atividades.
Talvez a contribuição de maior impacto da gestão do conhecimento seja facilitar a criação de soluções inovadoras, especialmente diante de desafios para os quais o conhecimento disponível não se mostra suficiente ou efetivo. Neste momento de grande turbulência e incerteza, estamos resolvendo problemas o tempo todo, criando soluções e adotando novas formas de trabalho. Estamos adaptando os negócios para uma nova realidade, reduzindo custos para sobreviver nos tempos difíceis que vêm pela frente, ou revendo ofertas de produtos e serviços, buscando oportunidades que possam dar sustentação ao negócio em um cenário novo. Soluções inovadoras são possíveis quando há um fluxo constante de conhecimento dentro da organização, e entre a organização e seus clientes, fornecedores e parceiros. A gestão do conhecimento promove a conexão entre pessoas e compartilhamento de conhecimentos, que são a base de novas ideias e soluções.
Um terceiro desafio para os negócios é aprender com a crise. Estamos passando por muitas mudanças: adotando novas rotinas, tomando decisões, criando soluções alternativas. Pessoas em toda a organização estão descobrindo novas formas de trabalhar, identificando oportunidades e necessidades não satisfeitas, criando novos métodos e soluções. Estamos lidando também com a perda de acesso a conhecimentos tácitos de colaboradores que não têm mais a mesma disponibilidade, ou mesmo que deixaram a organização. Enfim, estamos diante da necessidade de aprender não só como pessoas, mas como organizações, e aprender de uma forma nova: permitindo que o conhecimento seja incorporado em formatos e ferramentas adequados a uma nova realidade, diferente daquela com a qual toda a organização estava habituada.
Quando a aprendizagem precisa ir além do nível individual, estamos falando de aprendizagem organizacional. A gestão do conhecimento tem alto potencial de contribuição aqui, ajudando a estruturar o que está sendo feito e a garantir que o aprendizado com a crise seja absorvido pela organização. Seu papel é o de sistematizar e institucionalizar conhecimentos, oferecendo métodos e meios para que isso seja feito de forma sustentável. Isso significa documentar processos informais de forma que sejam mais facilmente disseminados; registrar experiências positivas ou negativas, para que sirvam de referência imediatamente ou no futuro; e transformar boas práticas localizadas em processos estruturados e amplamente adotados.
Futuro: conhecimento como fundamento para criar e transformar
No entanto, não será suficiente enxergar tendências e identificar oportunidades que possam ser exploradas. Será preciso imaginar cenários e futuros viáveis e trabalhar para construí-los. Para que isso seja possível, será necessário conhecimento, aprendizagem, inteligência e inovação, além de consciência daquilo que não sabemos.
Destacamos três desafios que as organizações que querem dar forma a esse futuro incerto enfrentarão: transformação dos negócios, de uma lógica industrial para outra digital; transformação na gestão, da hierarquia tradicional para modelos mais orgânicos e flexíveis; e uma nova relação com o conhecimento, que se torna cada vez mais um recurso fundamental ao negócio.
Desafios do negócio [Futuro] |
Contribuições da GC [Futuro] |
Transformação do negócio |
Conhecimento para construção do futuro |
Transformação na gestão |
Aprendizagem e inovação como rotinas |
Conhecimento como fundamento do negócio |
Protagonismo da GC na geração de valor |
Após a pandemia, diversas empresas e organizações de todos os setores terão que se reinventar. Muita coisa está mudando, e muitas dessas mudanças vieram para ficar. Como serão os hábitos de trabalho, consumo e lazer após a crise? Compras por delivery, aulas de yoga e consultas médicas online, até mesmo eventos culturais via streaming, podem se tornar comuns. Reuniões virtuais, processos digitais, acesso remoto a sistemas da empresa e muitas outras práticas também devem ser incorporadas à rotina.
E nos negócios, o que mudará? Com a crise, percebemos claramente a necessidade de negócios mais resilientes e ágeis. Como garantir o fornecimento de insumos, ou a continuidade da distribuição? Como será o atendimento e a logística no futuro próximo? Como deve ser reorganizada a força de trabalho? Teremos que trabalhar com equipes remotas? Como poderemos manter o fluxo de caixa e gerar alternativas de receita?
Adaptar-se às novas condições não será suficiente. O futuro será construído por aqueles que conseguirem imaginá-lo e viabilizá-lo. A transformação digital, que já estava na agenda de muitas organizações, está sendo acelerada pela crise, mas transformação digital não significa apenas automação de processos e trabalho remoto. Envolve também integração de canais, redesenho da experiência do cliente, introdução de uma cultura mais horizontal, além de novos modelos de negócio, mais digitais e disruptivos. As organizações que conseguirem reimaginar seu negócio, reunir os recursos necessários para transformá-lo, e mobilizar clientes e colaboradores em torno dessa construção farão parte desse futuro.
Para construir o futuro, as organizações precisarão de conhecimento. Primeiro, para conseguir visualizá-lo com clareza. Segundo, para concretizá-lo. Para se criar um novo setor, mercado, negócio ou produto, é preciso reunir pessoas competentes e experientes, com capacidade de criar e analisar cenários, de construir uma visão clara, e de tornar essa visão realidade. Uma estratégia de conhecimento identifica os conhecimentos necessários para essa construção, tanto os existentes como os que faltam. A gestão do conhecimento localiza e mobiliza o conhecimento interno (pessoas, inteligência, know-how que fazem diferença), assim como as redes externas (parceiros, centros de excelência, especialistas e atores diversos), articulando e integrando conhecimentos relevantes. A disponibilidade e a qualidade desses conhecimentos são determinantes para construir o futuro, assim como a coragem de pessoas e organizações assumirem o que não sabem, e a capacidade de gestão do conhecimento é central nesse contexto.
Além do negócio, as organizações precisarão reinventar também sua forma de trabalhar, seu modelo de gestão e consequentemente rever sua cultura e suas relações de poder. Deverão ficar mais enxutas e ágeis, ou mais robustas? Serão mais descentralizadas e flexíveis, ou mais concentradas e verticalizadas? Mais versáteis ou mais especializadas? Será que grandes equipes serão substituídas por pequenas células, ou teremos uma combinação das duas coisas? Continuaremos apostando na retenção de pessoas para garantir a continuidade do negócio, ou as relações de trabalho serão flexíveis e temporárias? Continuará havendo distinção entre processos e projetos, entre colaboradores e fornecedores? Essas e muitas outras questões vão exigir das empresas novas formas de configuração do trabalho e de seus mecanismos de gestão.
O grande desafio, no entanto, será o ambiente cada vez mais dinâmico, volátil e de adaptação constante, onde as organizações terão que incorporar a aprendizagem e a inovação em sua rotina.
Em um contexto em que muita coisa está mudando, de modelos de negócio à configuração das empresas e formas de trabalho, a relevância de mecanismos de aprendizagem contínua e inovação permanente se torna ainda mais evidente. O trabalho vai mudar e as organizações vão se transformar com mais frequência. Assim, um dos principais papéis da gestão do conhecimento será garantir que suas práticas e ferramentas promovam aprendizagem contínua e inovação constante.
A gestão do conhecimento pode contribuir para que todos os colaboradores se tornem protagonistas do seu aprendizado, do seu desenvolvimento e da criação da cultura de suas empresas: assimilando novas rotinas e formas de trabalho, acompanhando mudanças no mercado e novas tendências, adquirindo experiência, novas competências e comportamentos coletivos. Além disso, não só cada um está aprendendo individualmente, mas também a organização aprende continuamente. Ao promover o compartilhamento, a conversa e a colaboração de todos, a gestão do conhecimento ajuda a integrar diferentes perspectivas e competências em uma visão mais abrangente das mudanças e do futuro, e a expandir sua capacidade de operar e se adaptar.
Essa inteligência coletiva permite que a organização inove de forma mais consistente e efetiva. Ao integrar rotinas de acompanhamento de tendências e construção de cenários, de geração de ideias e conceitos, e de prototipação e experimentação contínua de novas possibilidades, a gestão do conhecimento desenvolve na organização a capacidade de aprender e inovar continuamente.
Diante das grandes dificuldades pelas quais as empresas vêm passando, a maioria delas percebe a falta que faz o conhecimento de qualidade na gestão e na operação do negócio, e como ele é determinante para a geração de valor. É muito mais difícil atuar com efetividade frente às demandas dos clientes e aos desafios operacionais sem contar com conhecimento qualificado acessível no momento certo e no formato adequado. E não é possível conduzir o negócio baseado em “achismos” ou narrativas alternativas, é preciso entender a realidade de forma objetiva e baseada em fatos e conhecimentos sólidos para que seja possível tomar decisões conscientes e inteligentes. Nesse novo cenário futuro, as organizações se veem desafiadas a lidar com o conhecimento de uma nova forma, trazendo a capacidade de gestão do conhecimento para os processos centrais do negócio.
Se o trabalho vai mudar e as organizações vão se transformar, talvez o principal papel da gestão do conhecimento seja o de garantir que as novas dinâmicas de trabalho e geração de valor incorporem processos e promovam relacionamentos que privilegiem o conhecimento como um ativo a ser gerenciado como parte do negócio, e não mais negligenciado como se fosse opcional ou algo a ser resgatado apenas em momentos de crise, como agora.
Isso requer mudança de mentalidade nas organizações. As relações entre os atores e personagens da cultura organizacional precisarão ser repensadas. Serão necessários novos processos e estruturas de reconhecimento e recompensa para os profissionais, impactando as métricas e objetivos dos negócios. E nossa relação com a governança, com os dogmas corporativos e as próprias identidade e propósito de nossas organizações terão que ser ressignificadas.
Esse repensar e ressignificar, através do foco no conhecimento como elemento-chave na estratégia e nos indicadores do negócio, nos permitirá estruturar o fluxo de conhecimentos como parte dos processos organizacionais e inserir práticas e ferramentas de gestão do conhecimento como parte do trabalho. Dessa forma, a GC se tornará uma protagonista do negócio nesse novo cenário.
Conclusões: gestão do conhecimento como protagonista da aprendizagem organizacional e da transformação dos negócios
Se concordamos que o mundo, o mercado e as organizações não serão mais os mesmos após esta pandemia, os desafios que começamos -- apenas começamos -- a discutir neste texto indicam que o conhecimento passa a ter um novo papel nos negócios. Assim, a gestão do conhecimento também deve se reinventar e assumir novo protagonismo na dinâmica organizacional. Para isso, propomos não um roteiro com respostas, mas um conjunto de perguntas que devem nortear o desenvolvimento de novas capacidades de gestão do conhecimento organizacional e de criação de novas práticas para o futuro próximo:
- Como entregar o conhecimento necessário àqueles que precisam, dadas as mudanças inesperadas?
- Como usar melhor o conhecimento para percorrer essa fase? Como aprender antes, durante, depois das mudanças?
- O que estamos aprendendo com a crise? O que fazer com o que aprendemos?
- Como criar um novo patamar de atuação, superior ao anterior à crise? Como não apenas sobreviver, mas aprender e inovar com a crise?
- Que tendências e oportunidades conseguimos observar? Que cenários e desafios precisam de atenção?
- Que futuro parece emergir das tendências e desafios? Que futuro queremos construir?
- Que conhecimentos precisamos buscar ou desenvolver para construir esse futuro? Como fazer isso?
- Qual o papel do conhecimento no negócio? E qual o papel da gestão do conhecimento? Como usar a gestão do conhecimento como norteadora da transformação?
- Como nos relacionamos com o conhecimento, a competência e o protagonismo dos nossos colaboradores?
- Como lidamos com aquilo que ainda não sabemos?
Em contextos de transformação, as perguntas são mais importantes do que as respostas, pois colocam as pessoas e a organização em movimento para buscar aprendizado e criar novas soluções. Ao fazer esses questionamentos e responder a eles com ações concretas, em conjunto com equipes, líderes e a organização como um todo, ajudaremos a criar condições para a evolução -- tanto da gestão do conhecimento quanto da gestão de negócios e organizações -- a um novo patamar.