Eu apenas encontrei dez mil jeitos
que não funcionam.”
Thomas Edison
A missão principal deste artigo é relatar as principais fases da criação de um determinado conhecimento desenvolvido por Sacks no período entre 1969 e 1972, cujo objetivo foi buscar a cura do estado catatônico de pacientes internos no Hospital Berth Abraham, onde trabalhava como médico neurologista. Para descrever esse processo de criação do conhecimento, vou usar como base metodológica as cinco fases clássicas de criação de novos conhecimentos, propostas por Nonaka e Takeuchi (fig. 1). A demanda inicial para a criação de uma solução de cura para os pacientes pós-encefálicos nasce de uma grande angústia de Sacks. Ele sabia que, apesar de o corpo estar adormecido, dentro desses pacientes havia consciência, havia vida, sobretudo quando ouviam determinadas músicas. A proposta era trazê-los de volta ao mundo, mas para isso precisava investir em novos conhecimentos e novos recursos para despertá-los.
Sacks, por meio de pesquisas em jornais da época em que ocorreu tal epidemia, descobriu um médico, já bem idoso, que vivenciou aquele momento tratando pacientes acometidos pela doença. Sacks fez contato com esse médico, e ambos compartilharam seus conhecimentos sobre as características da doença, tendo concluído que realmente os pacientes internados ali contraíram a doença quando criança, na década de 20. Milhares de crianças morreram no estágio agudo da doença, e aquelas que sobreviveram e acordaram, pareciam bem, como se nada tivesse acontecido. Naquela época, não era perceptível o quanto a infecção havia danificado a saúde de tais pacientes, mas os anos se passaram, e os sintomas neurológicos apareceram. Na década de 30, começaram a surgir nos consultórios pessoas pós-encefálicas, que não podiam mais se vestir ou se alimentar; em muitos casos, não conseguiam nem falar. Alguns pacientes já não mostravam nenhum pensamento, pois o vírus havia comprometido suas habilidades.
Os diálogos entre Sacks e o médico que tratou de doentes na fase da epidemia ajudaram muito na evolução das pesquisas in loco. Sacks continuava acreditando na sua percepção de que, dentro daqueles corpos, havia vidas a serem resgatadas e, com a ajuda dos profissionais do hospital, continuou as buscas sobre quais ações poderiam estimular os doentes a realizarem seus movimentos voluntariamente.
Na esperança de obter efetivo apoio da direção do hospital para essas pesquisas, Sacks, mais uma vez, tenta sensibilizar seus superiores. Na oportunidade, usa um novo recurso e apresenta o resultado de um eletroencefalograma que realizou em um dos pacientes. Durante o exame, ficou visível que todas as vezes que o paciente ouvia o médico chamar pelo seu nome havia uma alteração no exame, o que indicava alguma interação com o ambiente externo. Assim, de posse dessa evidência, a direção do hospital se comprometeu a apoiar a pesquisa.
(...) havia uma rigidez na musculatura axial, isto é, um dano a todos os reflexos da postura e não um mal funcionamento ou uma rigidez proveniente de parada cerebral. O que é chocante é uma profunda máscara axial devido ao aferente, que agora sabemos não deve ser confundido com uma apatia ou uma catatonia. (Extraído do filme “Tempo de Despertar”)
Os profissionais de saúde, em especial os enfermeiros, participavam ativamente das pesquisas de Sacks, em todos os experimentos. Eles eram agentes principais nas leituras de histórias, nas sessões musicais, nas danças e em diversas atividades lúdicas afins ao tratamento e aos experimentos. A proposta dessas atividades era tentar perceber quais estímulos externos provocavam nos pacientes alguma reação. Os exercícios eram realizados coletivamente, mas as reações percebidas precisavam ser individuais, e as mais significantes eram registradas no prontuário de cada paciente.
Esse grupo de pacientes, em cujo prontuário, antes, constava como diagnóstico “demência desconhecida”, a partir de agora, passaria a ter um novo conceito. Eles passaram a ser sobreviventes da encefalite letárgica, ou seja, eram pacientes que emitiam respostas a estímulos específicos, que, por sua vez, apresentavam uma esperança de que havia vida dentro dos seus corpos. Considerando esse novo status no processo de criação do novo conhecimento, o próximo passo foi investigar se uma nova droga denominada L-Dopa (dopamina sintética) teria eficácia no tratamento desses pacientes.
Quando dei L-dopa a esses pacientes, o “despertar” não foi apenas físico, mas também intelectual, perceptual e emocional. Essa reanimação ou despertar global contrariava os conceitos de neuroanatomia dos anos 1960, uma neuroanatomia que via o motor, o intelectual e o afetivo como compartimentos do cérebro totalmente separados e não comunicantes (p. 150-151).
Tudo parecia ir bem, até que o primeiro paciente a testar a droga começou a apresentar tiques nervosos e espasmos como efeitos colaterais da medicação; posteriormente todos revelaram esses mesmos sintomas, inviabilizando assim o tratamento. E todos voltaram ter os mesmos sintomas antigos, como sono contínuo, e a ficar ausentes do mundo. Então, qual seria o sucesso dessa construção do conhecimento? Sacks, em reunião com os médicos do hospital, mantenedores e profissionais de saúde do Hospital Berth Abraham, relata o aprendizado que foi possível construir nesse processo e, com uma carga de emoção muito intensa, diz:
Podemos nos esconder por trás da ciência e dizer que foi o remédio que falhou ou então que a doença tinha voltado, ou que os doentes não conseguiram superar por terem perdido anos de suas vidas, mas a realidade é que nós não sabemos o que deu errado. O que sabemos é que, com o fechar da janela química, outro despertar aconteceu. O despertar para saber que o espírito humano é mais forte do que qualquer droga, e é isso que precisa ser alimentado com o trabalho, a distração, a amizade e a família. (Extraído do filme “Tempo de Despertar”)
Os integrantes das várias equipes – psicólogos, assistentes sociais, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, terapeutas musicais, entre outros – volta e meia apareciam para discutir os casos dos pacientes. Quase todos os dias havia debates férteis e instigantes sobre os eventos inéditos que se desenrolavam diante das nossas vistas, que exigiam abordagens igualmente inéditas de todos nós (p. 151-152).
O elenco dos novos conhecimentos registrados durante o processo de busca da cura dos pós-encefálicos foi exaustivamente registrado e divulgado, o que possibilitou a proliferação de outros conhecimentos, formando assim a interminável espiral do conhecimento.
De tudo que temos visto sobre a gestão do conhecimento, sobretudo na criação de novos conhecimentos, é possível constatar que quando se tem um propósito claro, quando os parceiros são cúmplices e adequados, quando os novos conceitos se encaixam nas verdades levantadas, quando os espíritos envolvidos convergem para aliviar uma dor similar ao da necessidade de “despertar de um sono eterno”, quando a construção de um novo conhecimento toma a sua forma e assume a sua força, daí, a sua potência pode servir para realizar o inimaginável.
Conhecer dói, fazer este conhecimento crescer buscando a sua forma ideal, forma que caiba e se encaixe numa solução para atender a uma necessidade humana, dói mais ainda. Mas, só por saber que não há outro caminho, só por saber que o conhecimento é o próprio caminho, o fardo já se torna mais leve.
Elisabeth Vargas, como profissional de informação, atuou em empresas do sistema PETROBRAS por 15 anos, como especialista em Gestão do Conhecimento, desenvolveu projetos para implantação de melhorias em ambientes organizacionais e de aprendizagem. Atuou ainda como Diretora de Administração da SBGC e gerente de conhecimento da Serasa Experian. Atualmente, é consultora na área de Gestão do Conhecimento e, como Psicóloga, realiza atendimento clínico, usando uma abordagem psicanalítica.
Referências
IKUJIRO, Nonaka; HIROTAKA, Takeuchi. Criação do conhecimento na empresa. Rio de Janeiro, Campus, 1997.
SACKS, Oliver. Sempre em movimento. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
SACKS, Oliver. Tempos de despertar. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
SACKS, Oliver. Um antropólogo em marte: sete histórias paradoxais. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Tempo de despertar. Diretor: Penny Marshall. Produção de Walter F. Parkes; Lawrence Lasker. EUA: Sony Pictures, 1990. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AJR5Z0UMxA4